quarta-feira, 10 de março de 2021

DATA MAGNA: Professor da UFAPE escreve carta defendendo 10 de março de 1.811 como data de fundação de Garanhuns

 


Estimada colega professora Ivonete Xavier


Presidente do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns

Como professor, servidor público, ambientalista e cidadão, parabenizo o Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns (IHGCG) pela sua atuação técnica, científica e profissional em defesa dos patrimônios do município.

Enquanto atuante no Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Garanhuns (CODEMA), constantemente percebo como em alguns temas o CODEMA e o IHGCG têm atribuições comuns, como por exemplo, na preservação de patrimônios culturais e históricos, já considerados pela UNESCO e outros órgãos também como patrimônios ambientais, uma vez que ambiente abrange tudo que nos cerca, inclusive patrimônios material e imaterial.

Também nos assuntos ligados à geografia física, em especial nosso peculiar relevo, com as colinas ou montes, os vales, as nascentes, as poucas matas que ainda restam, nosso clima, tão ressaltado nos documentos históricos desde, pelo menos o século XVII, e que tanto dependem da preservação de nossas matas e montes.

Parabenizo, mais uma vez, o IHGCG pela constante defesa da história, dos fatos e acontecimentos. Quando nos atentamos à história, aos fatos, a verdade e o interesse público, difuso e coletivo, prevalecem. Ao contrário, quando se tenta distorcer os fatos, quando se efetuam manobras para ressaltar interesses momentâneos, geralmente fúteis, ou pelo menos, não muito republicanos, o prejuízo é justamente para o coletivo. Isso vale tanto para questões ambientais, quanto históricas.

Como exemplo, temos a depredação de patrimônios locais construídos, como alguns casarões ou elementos ligados à história municipal, como da ferrovia, em troca de uma infundada justificativa de crescimento econômico. Vão-se os patrimônios para sempre, mas o almejado crescimento decorrente da dilapidação do patrimônio, mais uma vez se comprovou ser apenas fumaça, promessa sem lastro. 

Até a própria data de fundação de Garanhuns, elevada a sua total autonomia por Carta Régia, assinada então de próprio punho pelo então Príncipe Regente do Reino de Portugal, em 1.811, um verdadeiro privilégio à época, agora está sendo minimizada por uma data mais recente (04 de fevereiro de 1.879). Esta última, fundada em uma Lei provincial burocrática, longe dos fatos históricos, geográficos e culturais que fizeram Garanhuns e, hierarquicamente, bastante inferior ao ato do então Príncipe Regente, a pedido do então governador. O nome Garanhuns, mais especificamente o Quilombo Garanhuns, já surge comprovadamente ainda no final do Século XVI nos documentos relativos à Guerra dos Palmares. 


Muito antes de 1.879, Garanhuns possuía Câmara de Vereadores, representação judiciária, policial, religiosa, tudo o que configura um município, tendo a Lei provincial a função de ajuste das nomenclaturas então em vigor. Em 1.874, 68 anos depois do próprio Regente reconhecer a soberania de Garanhuns, já haviam sido criados outros municípios com história muito mais recente, alguns desmembrados da própria Garanhuns. Como seria possível um município filho ser mais velho que o município mãe? Cientificamente e tecnicamente não seria. Parece óbvio, mas nem sempre o óbvio e coerente prevalecem, tanto nas questões ambientais, quanto históricas, geográficas e culturais.

Eu entenderia se, como acontece no mundo inteiro, se procurassem mudar a Data Magna ou a data de aniversário do município remontando à sua origem primária, sua povoação original, no caso de Garanhuns, talvez fosse a criação da Fazenda Garcia, ou talvez o Quilombo Garanhuns, o que se daria antes do ano de 1.670. Também entenderia se defendessem ser o aniversário a data em que Garanhuns adquiriu o reconhecimento de “Comarca”, de “Termo”. Talvez o ano de 1.699, ao se tornar o “Julgado de Garanhuns”, quando, salvo engano, já era a “sede da capitania do Sertão do Ararobá”, antes mesmo de se tornar a sede da Freguesia de Santo Antônio de Garanhuns. Muitos municípios em todo o mundo associam a criação de estrutura religiosa oficial como data de fundação. Poderia, assim, ser considerada a data da criação da Freguesia, do Curato, do Vicariato ou da Paróquia, ou mesmo então remeteria à doação, por parte de Simôa Gomes, à Confraria das Almas, voltando a data para 1.756. Neste último caso, seria equivalente à tantos outros municípios, como por exemplo o de São Paulo, capital do estado homônimo, que comemora sua fundação com a criação, em 1.554, de um núcleo para fins de catequização de indígenas, então apenas uma cabana de pau a pique coberta com folhas de palmeira. De fato e de direito, Garanhuns “aparece no mapa” e nos documentos muito antes de 1.879 ou 1.811.

Mas certamente, o que decorre desta ideia de desconsiderar as datas anteriores, em especial a de 1811, é uma dificuldade de se entender o significado de "Vila" e de "Cidade" no tempo do Brasil Colônia e Império. Aparentemente, um desconhecimento de filologia ou de mesmo de história. Pelo menos é o que eu prefiro acreditar. Dizia meu falecido avô que: “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”. Então, como eu não sou historiador e nem filólogo, recorro aos que o são para não correr o risco de repetir, perpetuar e difundir erros, equívocos, inverdades. Assim, recorro, por exemplo, ao texto de Maria Helena de Paula e Mayara Aparecida Ribeiro de Almeida, na revista Revista (Con)Textos Linguísticos (v. 10 n. 17, 2016), que ao efetuar extensa pesquisa de fontes da época sobre essas terminologias, identificou que, para o Brasil da época:

"Vila compreende uma povoação em que o número de habitantes é superior ao número de moradores de uma aldeia (arraial) e inferior à povoação encontrada em uma cidade". De outro modo, a cidade define-se enquanto um povoado de proporções maiores às de uma vila". (pp 158-159)

Mas ambos, “cidade” e “vila”, necessitavam ter, pelo menos, juiz, câmara e pelourinho. Em conclusão, identificaram que, à época, “o único fator diferenciador entre as vilas e as cidades é o seu limite territorial urbanizado”. Ou seja, Vila e Cidade eram juridicamente a mesma coisa, variando única e somente, a quantidade de habitantes urbanos. Algo como "cidade grande" e "cidade pequena", remetendo aos termos atuais.

De forma semelhante, na Tese de doutorado de Edison Favero na USP (de 2004) está didaticamente descrito, para não sobrar dúvidas, o significado da terminologia “vila”, “cidade”, “termo”, “município”, dentre outros, desde as raízes do Império Romano, até a legislação da República do Brasil. Nesse sentido, para Favero, Município é:

“divisão administrativa de origem romana, levada pelos romanos para a Península Ibérica, e de Portugal trazida para o Brasil; equivalente a vila; menor unidade territorial político-administrativa autônoma”. (p.228)

Ainda segundo Favero, o termo “Vila” significava “Sede do Termo, unidade político-administrativa autônoma equivalente a município, trazida de Portugal para o Brasil no início da colonização (...), tendo perdurado até fins do século XIX”. Nesse levantamento, o autor também identificou que, para a autonomia administrativa, ou seja, para ser vila/município, “deveria possuir câmara e cadeia, além de um pelourinho”, que Garanhuns já os possuía de muito antes. Termina informando que “vila” e “município” eram termos equivalentes, mas município só poderia ser utilizado na sede do Império (Portugal) e jamais em terras não emancipadas (Brasil Colônia). Para encerrar a dúvida, o autor destaca que o termo “cidade” nada mais era do que um título honorífico, concedido pela Casa Imperial, às vilas e municípios, antes da Proclamação da República, ou seja, sem nada acrescentar às suas autonomias. Na prática, as vilas maiores recebiam esse título, tornando-se “cidade grande”, em termos atuais.

No próprio discurso do Barão de Nazaré a Câmara Provincial, ao propor a elevação à categoria de cidade, que deu origem à Lei Provincial de 1879, o referido parlamentar deixa claro que se tratava de uma menção, de um título honorífico, relatando que “a Vila de Garanhuns é uma das mais antigas e notáveis desta província” e que “com a elevação à categoria de cidade, nenhum ônus virá aos cofres provinciais”. Ou seja, essa ausência de ônus demonstra, irrefutavelmente, que nada se alterou administrativamente, pois já era vila e administrativamente autônoma desde 1811, conforme consta no discurso. Por fim, o parlamentar então destacou como justificativa que “Garanhuns é já bastante grande", ou seja, reforça que se tratava de um título honorífico, por ter a cidade se tornado “cidade grande”.

Para não me alongar mais, vou apenas citar o cronista Dom Domingos Loreto Couto, mais especificamente sua monumental e magnífica obra "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco", de 1.757, na qual cita no início do Capítulo 4º do Livro Terceiro: "Recife cidade populosa, com o nome de Villa". Ou seja, “cidade” e “vila” à época eram juridicamente a mesma coisa, apenas variando de tamanho da área urbana. No caso, o autor defendia que Recife merecia o título de cidade, por ser populosa. A mesma obra cita ainda, dentre outras, as "villas" de Igarassu, Ciará (atual Fortaleza-CE) e Alagoas (atual Maceió-Al). Esta última, por exemplo, a "nobre Villa das Alagoas", mesmo recebendo a nomenclatura de vila, segundo esse autor possuía "seiscentos vizinhos", "muitos Engenhos", era sede de Comarca, possuía gerência sobre muitas “freguesias” e possuía "muitos sumptuosos Templos". Repito: mesmo assim, era apenas uma vila.

Claro que a discussão da “data de aniversário” não é algo que vá modificar diretamente as nossas vidas cotidianas de garanhuenses, porém, certamente, buscar trazer a data para 1.879 é, no mínimo, mais uma das tentativas de menosprezar a importância histórica da “Terra dos Garanhuns”, conforme descreveu João de Deus de Oliveira Dias. E, estranhamente, esse demérito parte justamente de dentro de Garanhuns, um tipo de autossabotagem como tantas outras que Garanhuns já presenciou ao longo de sua história.

É interessante e triste ao mesmo tempo que nesse específico quesito histórico, não seja aos historiadores que se tenha recorrido para sanar as dúvidas históricas. Se eu estou com uma dúvida médica, consulto um médico. Uma dúvida linguística, consulto um linguista. Para uma dúvida histórica, consulto um historiador ou, melhor ainda, Garanhuns tem o privilégio de ter um Instituto Histórico, Geográfico e Cultural. Desta forma, então, seria só consultar o Instituto, o melhor fórum para essa discussão. Porém, não é isso o que vem acontecendo e, infelizmente, não é um fato isolado. Em tempos atuais, a ciência vem sendo sistematicamente atacada pelo obscurantismo de forma que até a esfericidade da terra não conseguiu escapar dessa tentativa néscia de desconstrução, quiçá um “mero Instituto” ou um mero patrimônio ou meros 68 anos ou mais de gloriosa história.

Independente da data de fundação da povoação, Garanhuns foi juridicamente criada no Brasil colônia, se manteve administrativamente emancipada durante o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, durante o Império do Brasil e durante todo o período republicano. Certamente o tempo, o senhor da razão, demonstrará as verdades históricas.

Enfim... Desejo sucesso e longa vida ao IHGCG e aos que labutam de forma hercúlea pela sua manutenção e crescimento, mesmo com todas as dificuldades que permeiam o caminho.


Respeitosamente e ao dispor.


Marcos Renato Franzosi Mattos


Professor da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE)

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